Resenha de Democracy on the Ground: Local Politics in Latin America’s Left Turn por Gabriel Hetland (Columbia University Press, 2023)
Em toda a América Latina no início do século XXI, protestos em massa e descontentamento popular com os fracassos do neoliberalismo abalaram décadas de domínio da elite. Governos progressistas foram eleitos em todo o continente, abrangendo o espectro de reformadores modestos a radicais incendiários.
Em um novo livro, o sociólogo político Gabriel Hetland avalia a força da democracia participativa nos dois países mais à esquerda no auge da chamada Maré Rosa: Bolívia e Venezuela. Suas descobertas inesperadas levantam questões importantes para os esquerdistas em qualquer lugar que esperam exercer um dia o poder do Estado.
A crista vermelha da maré rosa
Os governos de esquerda que chegaram ao poder em todo o continente eram tão diversos quanto as populações que governavam. A Venezuela e a Bolívia podem ter ostentado os governos mais à esquerda da Maré Rosa da América do Sul, mas as administrações de Hugo Chávez e Evo Morales tinham características decididamente diferentes, cada uma moldada por contextos históricos e forças sociais distintas.
Hetland categoriza o governo Chávez como “populista de esquerda”. Um oficial militar de carreira, Chávez foi eleito presidente em 1998 como um reformador renegado. Os ciclos de protestos antineoliberais que antecederam sua ascensão eram em grande parte não coordenados e descentralizados, tornando a guinada à esquerda da Venezuela, no início, um assunto relativamente centralizado.
As administrações de Hugo Chávez e Evo Morales tinham características decididamente diferentes, cada uma moldada por contextos históricos e forças sociais distintas.
Evo Morales, por outro lado, era um líder veterano do movimento levado ao cargo pelo apoio de formidáveis movimentos populares em 2005. Hetland classifica o governo de Morales como “esquerda de movimento”, sendo seu partido Movimento ao Socialismo (MAS) um exemplo de um movimento militante e até revolucionário.
Na análise de Hetland, essas distinções condicionaram as respostas divergentes dos regimes ao inevitável contra-ataque da direita. Onde Chávez achou necessário “construir uma defesa mais forte contra a Direita, organizando e mobilizando extensamente os setores populares”, Morales, temendo uma guerra civil, “trabalhou para conter o contra-ataque da direita por meio de mobilização limitada e desmobilização das forças populares”.
Até sua morte prematura em 2013, Chávez incentivou uma “democracia participativa e protagônica” vibrante na Venezuela, fomentando uma base militante nas classes populares para defender um projeto cada vez mais radical contra as elites domésticas e seus aliados imperialistas. Na Bolívia, no entanto, argumenta Hetland, o projeto insurgente do MAS se transformou no que Antonio Gramsci chamou de “revolução passiva”, com reformas sociais significativas acompanhadas de desmobilização popular e acordos com interesses das elites.
Para Hetland, tudo se resume à construção de “hegemonia de esquerda”. Nessa análise, a hegemonia de esquerda é alcançada quando um partido de esquerda consegue estabelecer “liderança moral e intelectual” a ponto de até a Direita ser compelida a “jogar o jogo político” em seus termos. Ele argumenta que o governo de Chávez teve sucesso em estabelecer hegemonia na Venezuela, enquanto Morales na Bolívia não o fez.
Essa divergência explica as descobertas inesperadas de Hetland no nível local. Em ambos os países, Hetland compara dois municípios, um governado pela esquerda e outro pela oposição de direita. Ele antecipava, como a maioria dos leitores da Jacobin, uma governança participativa maior nas cidades administradas pela esquerda em ambos os países. Em vez disso, ele encontrou algo diferente: tanto as cidades governadas pela esquerda quanto as pela direita na Venezuela estavam implementando robustos programas de orçamento participativo, enquanto ambas as cidades bolivianas pareciam estar suprimindo ativamente a participação popular.
Hegemonia de esquerda na Venezuela
Hetland data o auge da hegemonia de esquerda na Venezuela de 2005 a 2013. A supremacia do chavismo nesse período tinha três facetas: a incomparável carisma de Chávez, os altos preços do petróleo e um contexto regional favorável.
Após a eleição de Chávez em 1998, a Assembleia Nacional Constituinte de 1999 inaugurou um período de ampla participação e organização popular. O novo governo mobilizou as classes populares da Venezuela em formas que começaram com os grupos de bairro chamados Círculos Bolivarianos, depois comitês urbanos baseados em questões, conselhos comunitários e comunas. Em 2007, Chávez fundou o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).
Neste período de avanço popular em direção a horizontes socialistas, as receitas abundantes do petróleo foram fundamentais, mas mais importante foi o seu destino. Os aumentos nos gastos sociais estatais assumiram a forma das missões sociais emblemáticas, que forneciam serviços públicos e produtos básicos gratuitos. Os gastos sociais como porcentagem do PIB subiram de 11,3% em 1998 para 22,8% em 2011, enquanto a pobreza caiu de 62% para 32%. De 2012 a 2015, a Venezuela foi o país mais igualitário da América Latina.
Durante esse auge hegemônico, os radicais da oposição foram marginalizados em favor de uma estratégia mais suave “disposta a se envolver nos termos do chavismo”. Como resultado, tanto as cidades governadas pela esquerda quanto aquelas pela direita que Hetland estuda adotaram políticas robustas para envolver os moradores em tomadas de decisões políticas significativas.
Hetland escreve que o município rural governado pela esquerda, Torres, “pode ter sido a cidade mais democrática do mundo” entre 2005 e 2016. Sob prefeitos socialistas fortes do chavismo, Torres promoveu reformas radicais para coletivizar a governança local e começou a experimentar a produção socializada. Mas até na cidade de Sucre, um município liderado pela centro-direita na região metropolitana de Caracas, Hetland encontrou o que ele caracteriza como “democracia administrada”, ou um “regime democrático controlado pelo Estado” no qual os moradores tinham “controle real, embora limitado” sobre o orçamento.
Após 2013, no entanto, os pilares que sustentavam a hegemonia do chavismo colapsaram. Após a sua morte em 2013, veio a queda dos preços do petróleo em 2014, que não se recuperariam até 2021. Neste período de reversões econômicas e declínio, o contexto regional deteriorou-se de acordo, com um ressurgimento feroz da direita em todo o continente.
A depressão econômica que se seguiu na Venezuela é sem precedentes, graças à guerra econômica do governo dos EUA na forma de sanções devastadoras e à desestabilização de seus aliados na oposição, agravada por uma “política monetária disfuncional” que Nicolás Maduro não abandonou até 2019. Como Hetland observa, no entanto, esses fatores externos e internos não estão isolados: a política inflacionária foi promulgada em resposta à ameaça de fuga de capitais em 2003, e as sanções dos EUA são em grande parte responsáveis pela queda na produção de petróleo venezuelana, contribuindo para manter o governo sem receita.
A resposta cada vez mais repressiva de Maduro à deterioração da situação política correspondente coincidiu com a escalada de táticas da oposição, culminando com as “tragicômicas” escapadas apoiadas pelos EUA de Juan Guaidó. Naquela época, a crise econômica em espiral e a correspondente crise política haviam eliminado efetivamente as condições para a hegemonia de esquerda na Venezuela.
De “Reforma Insurgente” para “Revolução Passiva” na Bolívia
Hetland divide o governo de Morales em três períodos: reforma insurgente entre 2006 e 2009, revolução passiva de 2009 a 2016 e crise de 2016 a 2019. Nessa narrativa, Morales assumiu o cargo com um programa transformador, mas logo começou a se mover para a direita.
A eleição de Morales em 2006 foi a culminância triunfante de vários anos de protestos militantes liderados por indígenas contra o neoliberalismo. Dois blocos conflitantes surgiram nesse período, divididos por linhas ideológicas, étnicas e geográficas: um “bloco indígena revolucionário de esquerda” nas terras altas e um “bloco ‘burguês-oriental’ reacionário” em Santa Cruz e nas terras baixas.
No primeiro mandato de Morales, o governo trouxe novas receitas significativas por meio da nacionalização parcial do gás natural, convocou uma assembleia constituinte e buscou a reforma agrária. Este período de reformas insurgentes foi marcado por intensos conflitos entre esquerda e direita. À medida que a pressão das elites da oposição aumentava na forma de sabotagem política e violência nas ruas, Hetland descreve o MAS servindo “como árbitro entre forças populares de esquerda e de direita”.
No segundo mandato de Morales, com o MAS controlando completamente o governo, a administração optou pela moderação em vez da radicalização. Em resposta ao crescente contra-ataque da direita, o governo se aliou a elites agrárias das terras baixas, e as relações com os movimentos populares ficaram tensas. Este período ambíguo de “revolução passiva” não foi sem ganhos sociais significativos, mas os movimentos enfrentaram “repressão e cooptação crescentes”, enquanto as estruturas predominantes de poder de classe foram em grande parte preservadas.
O terceiro mandato de Morales foi ainda mais tenso, com sua polêmica decisão de eliminar os limites de mandatos, apesar de um referendo nacional contrário. A oposição aproveitou a conjuntura para orquestrar o golpe de outubro de 2019, e a subsequente ditadura da extrema-direita de Jeanine Áñez provocou “violência real e simbólica” contra as maiorias indígenas, desencadeando protestos em massa. Quando Áñez finalmente cedeu e realizou eleições em outubro de 2020, o candidato do MAS, Luis Arce, venceu por uma margem confortável.
Essa interação complexa e contraditória entre transformação e restauração, revolução e reação, condicionou os resultados democráticos decepcionantes encontrados por Hetland em seu trabalho de campo boliviano. No governo de direita de Santa Cruz, coração da oposição racista, Hetland descreve um regime reacionário de “clientelismo tecnocrático”, corrupção generalizada e ausência de programas participativos.
Mais preocupante, no entanto, foi o clientelismo e a hostilidade à governança participativa que ele encontrou em El Alto, a cidade governada pelo MAS famosa por suas mobilizações militantes e organizações populares formidáveis. Processos de orçamento participativo existiam, e associações cívicas realizavam ações diretas dramáticas e regulares para impor sua vontade, mas o governo da cidade estava cada vez mais em desacordo com os movimentos locais, espelhando uma estratégia nacional de desmobilização e contenção.
Democracia e suas insatisfações
De muitas maneiras, a pesquisa de Hetland é uma bem-vinda repreensão às denúncias severas do autoritarismo de Chávez que ainda são muito comuns entre os liberais, para não falar da Direita. Na Venezuela, onde os freios e contrapesos burgueses foram amplamente abolidos e o partido do presidente dominava todos os poderes do governo, os trabalhadores tinham mais controle sobre as condições de suas vidas do que talvez em qualquer outro lugar do continente naquela época. Este relato da revolução democrática que ocorreu entre 2005 e 2013 também contradiz as alegações de críticos de esquerda como Franck Gaudichaud, Massimo Modonesi e Jeffrey R. Webber, para quem toda a Maré Rosa foi um exercício de “revolução passiva”.
Mas “Democracia no Terreno” é também uma história de advertência. No bastião governado pela esquerda dos celebrados movimentos indígenas da Bolívia, Hetland encontrou um processo tenso de contenda popular. Essas tensões ajudam a explicar por que, apesar da reversão democrática significativa do golpe de 2019, o conflito interno continua a afligir o MAS e sua base social organizada. De fato, as reversões subsequentes na Venezuela revelam quão contingentes são sempre os ganhos de qualquer projeto revolucionário.
Fundamentalmente, o livro trata do significado e escopo da democracia sob o capitalismo. Hetland conta como as lutas latino-americanas pela democracia foram despojadas de sua promessa socializada com o triunfo da contrarrevolução neoliberal sobre os insurgentes movimentos de libertação nacional. Com a economia política da região firmemente subordinada aos interesses financeiros e comerciais liderados pelos EUA, a definição de democracia foi significativamente diminuída para garantir a ditadura do capital no local de trabalho e a mandatária do imperialismo sobre a periferia global.
O surgimento de iniciativas participativas de governança local na região remonta precisamente a esse período nas décadas de 1980 e 1990. Como mostra o estudo de Hetland, a Direita pode, sob certas condições, ser temporariamente obrigada a tolerar um grau de democratização no orçamento municipal. Mas ela não tolerará por muito tempo qualquer invasão desse tipo na economia.
Hoje, a direita latino-americana está mais uma vez confirmando sua histórica antipatia pela democracia em qualquer esfera. Essa hostilidade está claramente visível na Guatemala, onde até a democracia liberal formal só foi tolerada a contragosto por curtos períodos.
Os liberais, que permanecem dedicados às exauridas instituições da democracia (neo)liberal, não conseguem distinguir entre os ataques antieconômicos da direita e os projetos de esquerda para superar as instituições liberais com formações coletivas mais radicais. “Democracia no Terreno” coloca essa distinção a nu, revelando os compromissos profundamente democráticos da esquerda socialista e os desafios para sustentar essa promessa.
Sobre os autores
é doutoranda em Estudos Latino-Americanos na Universidad Nacional Autónomo de México (UNAM) na Cidade do México.